domingo, 27 de julho de 2008

Noites cariocas



23h58 - Chegada alvissareira à redação. Ninguém na sala de escuta. Mal sinal.

0h00 - Conversa pelo rádio com o ‘motora da madruga’. “A chapa esquentou no Morro Azul, cumpadi”, ele me avisa.

0h01 - Um minuto de plantão e já sei. O crime do Morro Azul (bom título para um livro policial juvenil, hein?) vai me custar um passeio pela comunidade, que, revoltada com a morte de um rapaz no pé do morro, achou por bem incendiar carros, espalhar lixo, interditar ruas e depredar lojas pelo Flamengo. Pra marcar uma posição, sabe? Aparentemente, a culpa é da polícia. Pela morte do rapaz, sim. Mas e quem paga pelos carros incendiados, vitrines quebradas etc.? Ninguém quer saber de conversa. O negócio é ação, reação, destruição.

0h11 - Leio e “corto pelo pé” a notícia sobre morte e descontrole social no Flamengo. É, tá ruim pra todo mundo. Depois, vou até o morro ver qual é. Contra a vontade, obviamente.

0h50 - Os homens se preparam para rebocar o carro da polícia, que se chama viatura e está bloqueado no morro. A comunidade está indócil. “Assassinos e covardem, mataram um trabalhador”, repete uma mulher. Um motorista de ônibus, copo de cerveja na mão, chama um PM pro pau. O PM, fuzil em punho, olha pro cara, furioso. O carro da polícia desce o morro, rebocado. Vaias para o carro. Alguém atira uma garrafa de cerveja. A viatura não tem uma janela intacta.

1h10 - A imprensa (falada, escrita e televisada) invade a 9ª DP, no Catete. Lá dentro, um garoto de 21 anos está apavorado. Ele viu a morte do rapaz e prestará depoimento como testemunha. Acho que ele preferia não ter visto nada.

1h17 - A aglomeração da imprensa na porta da DP atrai a curiosidade de quem passa em frente. Um rapaz com um violão na mão e um capacete de obras na outra passa entre jornalistas e policiais, tentando adivinhar, com o olhar, o que está acontecendo. Cinegrafistas e fotógrafos se acotovelam atrás de um registro da testemunha em pânico. Passa um carro e o motorista grita: “urubus!”. Um repórter grita de volta: “Porra, eu sou tricolor!”.

1h42 - Rodinha da imprensa em frente à delegacia. Alguém lembra que o morto era manco, cego de um olho e já havia sido vítima de bala perdida. “Ô, vida severina”, lamenta uma repórter. Outro conta de um lendário jornalista, em ação no morro horas antes, interrogando a viúva. “Desculpe, mas seu marido era manco da perna esquerda ou direita?”

2h05 - O rapaz do violão e capacete passa de novo. Observa mais uma vez a confusão. Pareceu ter ido embora sem matar a curiosidade.

2h38 - Outra testemunha, uma senhora, deixa a sala da delegada de plantão se queixando: “Se eu soubesse, tinha ficado na minha terra”. Ela e a mãe do rapaz apavorado (que ainda não testemunhou) começam a conversar. “Nessas horas é melhor ser surdo e não ver nada.”

2h48 - As senhoras desfiam um impressionante rosário de lamentos e denúncias contra os policiais. Histórias sem fim de abuso, desrespeito e ilegalidade. “A quem a gente pede socorro?”, uma delas pergunta para os repórteres. Vontade de me enfiar num buraco.

2h53 - Reparo numa placa na entrada da delegacia. “9ª DP - Delegacia Legal. Inaugurada em abril de 2002. Governador: Anthony Garotinho. Chefe da Polícia Civil: Álvaro Lins.” Isso explica muita coisa, não? Um repórter comenta: “Falta outra placa em cima dessa. Com a palavra ’Procurados’.”

2h58 - As duas senhoras continuam sua conversa. Uma diz: “Os policiais acham que são deuses, tiram a vida de qualquer um. Não quero que nenhum mortal tire a minha vida. Só Deus. Quero viver que nem a Dercy Gonçalves.” “Ih, menina, ela morreu hoje…”

3h05 - A delegada avisa que não vai falar com a imprensa. A imprensa decide ir tomar um café na padaria. O rapaz apavorado ainda não testemunhou.

3h15 - O fotógrafo honra a raça na padaria. “Eu quero um sanduíche de presunto e queijo.” “Ah, você quer um misto?” “Não, eu quero sanduíche de presunto e queijo. Odeio misto.” E a atendente: “Tá bom. Ô Válter, faz um misto!”

3h36 - No Largo da Cruz Vermelha, duas motos quase batem. O carona de uma delas grita alguma coisa para o piloto da outra moto e enfia a mão por dentro da camiseta, como se fosse sacar uma arma. O que gerou o comentário no carro: “Esses caras ficam brincando assim, passa a polícia e metralha todo mundo, agora que eles estão nessa de atirar antes de perguntar.”

3h40 - De volta à redação.

4h43 - Um passeio pela redação deserta pra espantar o sono. Se eu tivesse uma lanterna, seria o próprio zelador do museu.

4h49 - Uma ronda telefônica pelas delegacias. “Alô, é da 19ª? Alguma coisa aí pra gente?” “Não, tá tudo calmo, graças a Deus.” “Valeu. Alô, é da da 23ª? Tá tudo calmo por aí?” “Até agora sim, graças a Deus.” “Um abraço.” A cidade é uma calmaria desde que a polícia criptografou sua freqüência de rádio.

5h00 - Toca o telefone. “Ih, fodeu.” É o cara do plantão de uma TV. “É isso mesmo? Tá tudo calmo agora?” “Parece.” “Que bom.” “Nem me fala.”

5h14 - Vou ao banheiro.

5h16 - Bem melhor agora.

5h26 - Navegando. Parti do Arrastão (fundamental) e aportei de cara no download (CC) de ‘Mídia, Máfia & Rock’n'Roll’, do Cláudio Júlio Tognolli (editora do Bispo). Direto ao capítulo 8, sobre jornalismo cultural e ‘De como os cadernos do gênero estão cada vez mais escravos das assessorias de imprensa’.

5h35 - Envio, a quem de direito, pequeno relatório sobre meu passeio ao morro e à DP e volto ao texto do Tognolli.

6h02 - Ainda navegando. E contando os minutos. Faltam 58.

6h07 - “Surfar a crista da onda das ofertas de catálogos culturais, dos guias, é estar conectado visceralmente à torrente, ao fluxo. Não queremos mais tão-somente a arte que nos gera efeitos; queremos sentir o efeito de estar no fluxo, eis aí a mais nova leitura da frase “O meio é a mensagem”, de Mc Luhan.” Às seis da manhã, isso fez todo o sentido. Mas pode ser o sono. (p.144)

6h08 - Tem missa na TV.

6h18 - Soooooono, muito sono. E mais um cafezinho.

6h29 - Caralho-merda-puta que pariu, a porra do tempo não passa! (minha sincera homenagem à Dercy)

6h33 - Telefono pra um colega de infortúnio. “É isso, então?” “É isso mesmo.” Pelo menos pra gente fez sentido.

6h48 - Faltam 12 minutos pra alforria e me vem um poliça contar que está pra começar uma mega ultra uber operação de apreensão de balões “de grande porte”… em São Gonçalo? Um abraço!

6h53 -Liberdade! Com sete minutinhos de troco. Agora é só subir o post e cantar pra subir. Bom dia a todos e até uma próxima. Ou não, de preferência.


Por Calaza no Raios Triplos.

2 comentários:

Anônimo disse...

caraca, mas que PRIMOR de texto, vou guardar PRA SEMPRE!

Ulysses Dutra disse...

Olá Júlio. O texto é fodástico né. Valeu o comentário e visita e seja sempre benvindo. abrazzzzzz