segunda-feira, 14 de julho de 2008

"Do que morrem os outros"

Desde menino, todo mundo diz que a voz de João é bonita. Ele canta em aniversários, nas reuniões do clube e da escola. Os parentes, amigos e conhecidos falam sempre que João tem muito jeito, é melhor do que muito artista da televisão. Um dia, João acredita e vai ser cantor. Não há muitos caminhos a escolher. Os programas de calouros pouco podem oferecer, mas é geralmente o primeiro passo. Cedo João percebe que o mundo artístico é bem mais complicado do que imaginava. Os responsáveis pelos programas de calouros estão mais empenhados em se autopromover do que em arranjar-lhe uma oportunidade. Então ele tenta lançar um disco. Vai de gravadora em gravadora, as respostas são parecidas: "Volte na semana que vem." "Infelizmente, nosso elenco está completo." "O encarregado não está."

Alguém aconselha João a arranjar um empresário, uma espécie de quebra-galhos profissional. Pela mão do empresário, João entra numa gravadora. Faz seu primeiro compacto. Começa então a caitituar, a divulgar seu disco. Levanta de madrugada para correr as emissoras de rádio. Os disk jockeys precisam ser visitados, adulados, comprados. Muitas vezes a carreira de João fica por aí mesmo. O disco não pega, a gravadora não lhe dá mais oportunidades. João vira porteiro de boate, divulgador de emissora, faz-tudo da televisão.

Pode acontecer, porém, que o disco estoure nas paradas de sucesso. O empresário conhece muita gente, consegue notícias no jornal, fala com os produtores de tevê e João é escalado para um programa. Nessa época, acontece talvez a coisa mais importante de sua carreira. Ele passa a ser considerado como um provável futuro ídolo. João agora precisa de uma imagem e um nome. Os Beatles não eram os Beatles antes que o empresário Brian Epstein criasse sua imagem cabeluda e inconformista. Nem Roberto Carlos, nem Wanderléa, nem Elis Regina alcançaram o estrelato sem antes serem estudados, catalogados e encaixados numa figura que nem sempre corresponde à realidade. A imagem é escolhida pelo empresário. O nome também: que tal Rob Lee, ou Carlos Augusto?

Praticamente todo o futuro de João está em jogo, mas ele não decide, nem ao menos influencia nestas escolhas. O empresário segue a moda do momento. O público quer um rapaz de olhar triste, jeito tímido, que veio da pobreza: um novo Roberto Carlos, com quem os garotos se identifiquem e por quem as meninas de apaixonem. João se transformará neste personagem. Ele pode ser alegre e extrovertido, mas terá que fingir que é triste e tímido. Pode ser da classe média, inventarão que passou miséria. Se o público recusar esta imagem, haverá mais um fracassado pelas redações de jornais e revistas, pedindo uma notícia, uma reportagem. Será o eterno freqüentador dos corredores de tevê, adulando produtores e diretores, gravitando em torno de um ídolo. João não ficará sozinho. Há muita gente na mesma situação dele.

Se a imagem for aceita, João se transformou em ídolo. Sua batalha agora é manter a posição. Os astros têm saúde delicada, morrem de diversas doenças: má orientação na carreira, escolha errada da imagem, tudo isso mata lentamente, numa agonia dolorosa e prolongada. João pode ser atacado deste mal. Se não vier um segundo sucesso, a moléstia é fulminante. João teve uma música nas paradas de sucesso. O público gostou, mas ficou esperando mais. Mas João não tinha mais o que mostrar.

Falta de amadurecimento artístico, lançamento prematuro, apoiado apenas num pistolão, mata ainda mais rapidamente. João cometeu o mesmo erro de tantos outros. Não tinha música nas paradas, nem era conhecido, mas conseguiu a proteção de um sujeito importante na tevê. Foi lançado como astro nos principais programas de uma emissora. O público não se deixou enganar. João não tinha o que mostrar. O público não teve pena de crucificá-lo.

Tirado daquela seção de editoriais não-assinados nas primeiras páginas da revista Realidade, década de 60.


Um dos excelentes artigos sobre música republicados no não menos excelente blog Vitrola.

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