domingo, 24 de janeiro de 2010

A realidade de um ídolo em crise

Em 1968 o jornalista, escritor e psiquiatra Roberto Freire acompanhou o cantor e compositor Roberto Carlos em gravações de estúdio, no programa Jovem Guarda e numa viagem à Florianópolis para duas apresentações. A breve convivência e mais um maço de cartas que o jornalista teve acesso, deram-lhe os subsídios para escrever a matéria “Este Homem Procura Um Caminho”, publicada na revista Realidade em novembro daquele ano. Freire analisa o comportamento das fãs e revela o Roberto Carlos em crise na transição de ídolo teen da Jovem Guarda para o artista maduro e mais popular da Música Brasileira.


Alguns anos depois desse encontro o pai da Somaterapia lançaria o romance Tchau, Amor! , que “trata da idolatria agindo sobre a alma feminina criando apaixonada e insaciável fome de amor”. Ao que consta, Roberto Carlos não se incomodou com esse livro. Há até um apêndice no final com o texto publicado em Realidade e transcrições de várias das cartas de fãs recebidas por Roberto Carlos. Juras de amor, compositores oferecendo músicas, ameaças de suicídio(!), e muitas, muitas mulheres ( e homems) querendo um pedacinho dele.

Alguns trechos da matéria que transcrevi para cá:

"Palco do teatro, o programa Todos os Jovens do Mundo ia começar. Moças e crianças, na platéia, gritavam seu nome. Quando a cortina é levantada, a gritaria é total. O conjunto toca os primeiros acordes. Diante do microfone, sob as luzes piscando, e recebendo flores que são jogadas da platéia, Roberto Carlos diz cantando: "Preciso urgentemente de um amigo, para lutar comigo..." Houve um súbito e intenso silencio na platéia.

Antes de ir procurá-lo, haviam-me falado muito sobre sérias dificuldades que estaria vivendo e que ameaçavam sua carreira. De fato, a voz e o jeito de cantar aquela canção pareciam diferentes.

Encontramo-nos depois do programa. Eu nunca o havia visto fora do palco e dos vídeos. Ele aceitou a reportagem, mas notei que o fazia contra a vontade.Acompanharia seu trabalho no Rio, onde ele iria gravar discos e fazer um programa de televisão. Depois, em Florianópolis, assistiria a seus shows."


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"Chegamos à gravadora. Logo à entrada do edifício, um grupo de jovens entrega-lhe fitas magnéticas. São compositores. Roberto trata-os de forma brincalhona e promete a todos uma resposta no fim da gravação, depois de ouvir as fitas. E me explica:

- Como meus discos vendem bastante, as músicas que gravo rendem um bom dinheiro para eles. Já lancei muita gente que hoje se vira sozinha por aí. Isso me obriga a um bruta trabalho, mas vale a pena. De cada cem músicas que me mostram, às vezes posso aproveitar uma."


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"Descemos ao estúdio. O maestro conduz o conjunto RC-7, apresentando a Roberto o arranjo. Depois o discutem. Várias modificações são introduzidas. E a música é repetida várias vezes. Agora, estamos novamente na cabina de gravação. Roberto Carlos ouve dali a execução do arranjo. Anota num papel os defeitos que vai descobrindo. Pelo microfone, dialoga com o maestro e com o músicos. As horas passam e ele não se satisfaz nunca. Não percebo, de início, as diferenças entre uma execução e outra. Ele começa a se exasperar, manifestando isso mais nas mãos que no rosto ou nas falas. Deve estar sentindo que o problema é mais dele que dos músicos. Os seus dedos atritam uns sobre os outros, de modo aflito. Os músicos vem ouvir as gravações e se estabelecem rápidas discussões. Já estamos ali há quatro horas, Roberto tem profundas olheiras. Finalmente, descobre o erro fundamental e a maneira de corrigi-lo. Então volta a brincar e a sorrir. Pega uma pequena gaita e desce para o estúdio. Mistura-se aos músicos. E iniciada a série de gravações finais, nas quais ele executará partes de gaita e cantará. Mas ainda volta à cabina com os músicos, e ouvem o resultado do trabalho. Ficam satisfeitos, porém não há mais tempo para a gravação definitiva. Foram seis horas de luta e decidem deixar para a próxima semana a gravação com o canto. Sinto-me frustrado e digo isso a ele.

- Agora não adianta mais, estamos todos exaustos. O importante é que consegui o que queria: um som diferente, novo."


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"Seu Evandro mostra a Roberto a última gravação que fizeram para o seu LP. O jeito de cantar é realmente diferente: tenho a impressão de que ele estava emocionado ao cantá-la. Digo o que pensei.

- Rapaz, não sei explicar, mas essa música mexe comigo. Eu estava chorando quando acabou a gravação. Estão acontecendo coisas estranhas dentro de mim. E tudo passa para a interpretação quando as músicas dizem algo parecido. Mas, infelizmente, isso só acontece nas gravações.

De fato. Mais tarde eu o ouvi cantando a mesma música diante de um auditório. O ídolo atrapalha o cantor, rouba-lhe a concentração e a emoção.

- Por isso me dedico cada vez mais às gravações. O disco é a coisa mais importante da minha carreira. Passo todo um ano preparando cada LP. Você viu como sofro. É uma luta que me dá grande alegria. No estúdio posso pesquisar, descobrir o que é mesmo quente. Mas o quente novo, pra frente. No estúdio, trabalhando, ouvindo os cantores negros americanos."


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"Fui convidado para jantar em seu apartamento. Lá estariam, além de Nice, mais três amigos que o acompanham desde o início de sua carreira. A conversa giraria exclusivamente em torno dos problemas que enfrentaram juntos para impor as roupas extravagantes e os cabelos compridos. Esperavam uma natural reação negativa e agressiva, principalmente por parte dos homens. E estavam dispostos a enfrentar tudo com a mesma agressividade.

- Se vencemos, foi na bordoada, viu?

E começam a desfilar os casos. Há alguns realmente divertidos. Certa vez, na Avenida Atlântica, no Rio, Roberto dirigia seu carro. Um rapaz, na calçada, mexeu com ele. Roberto freou o carro, mas levou algum tempo para descer, devido ao trânsito. E mandou o maior murro no rapaz que estava parado ao lado do carro. Acontece que não era o que havia folgado com ele.

- Tanto fez que não fosse ele. O importante era que todo mundo ficasse sabendo que aquelas palavras não combinavam mesmo com a gente."


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"Dois depois, no aeroporto de Roberto embarcava para Santa Catarina. Estava ainda triste e abatido. No aeroporto de Florianópolis, uma multidão de jovens o esperava. O sorriso e o aceno que dirigiu às pessoas que gritavam seu nome foi tímido, inseguro, quase aflito.

Agora, eu estava acompanhado do fotógrafo Roger Bester. Pouco mais tarde Roberto nos ia receber em seu quarto do hotel. Mas tivemos de enfrentar duas barreiras. Primeiro, conseguir entrar no hotel, onde a massa se aglomerava diante da porta cercada por um grupo de soldados. Depois, convencer a escolta que guardava a porta do apartamento de Roberto Carlos de que tínhamos autorização para falar com ele. Ficamos uns instantes na ante-sala, e pude observá-lo sentado numa poltrona, sozinho, no quarto. Chupava uma laranja, olhando para a janela. Da rua, vinham os gritos das moças. Chamavam seu nome. A impressão era de uma intensa solidão habitada por coisas incomunicáveis. Aqui dentro, a laranja em sua mão. Lá fora, o coro de vozes femininas que repetia "eu te amo, eu te amo, eu te amo", estribilho do mais recente sucesso de Roberto Carlos."


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"Tivemos de passar toda a tarde trancados naquele quarto. Roberto foi poucas vezes à janela acenar para as admiradoras.Aos poucos, ia retomando a jovialidade habitual, sobretudo graças ao jeito espontâneo com que seus amigos e colaboradores diretos o tratam. Há entre eles uma franqueza simpática, rude e terna ao mesmo tempo. Alguns são obrigados a funções que poderiam ser humilhantes, mas tanto Roberto como eles mesmos conseguem levar tudo na brincadeira. Por exemplo, se Roberto precisa de uma tesoura, ou vai ele mesmo apanhá-la, reclamando de mentira a ineficiência dos colaboradores, ou pede-a em tom de chefe ranzinza, para ouvir em resposta um palavrão de brincadeira de quem deve cuidar desses objetos. Ao mesmo tempo, sabe ouvir com atenção e interesse os problemas e as queixas dos auxiliares, inclusive sobre ele mesmo, Roberto Carlos."


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"Sua imensa popularidade abre-lhe todas as portas exteriores, mas fecha algumas mais íntimas, e mesmo essenciais. A comunicação de massa, que caracteriza sua vida artística, limita as comunicações pessoais. Um ídolo não pode adotar as soluções fáceis para pequenos ou grandes conflitos interiores, que todo homem sofre diariamente. Além disso, alguns jornalistas não compreendem isso e procuram valorizar suas reportagens com fatos dramáticos, infelizes, medíocres da vida de ídolos populares, como se um sofrimento ou fraqueza humanos diminuíssem o valor de suas criações. A intimidade de um homem não pode ser violada à sua revelia, não importa qual seja o delito que haja cometido. Penso nessas coisas porque Roberto Carlos é transparente para quem aprendeu a ver e a ouvir o próximo, sem preconceitos e intolerâncias. Talvez, por isso mesmo desperta nas pessoas simples tão grande admiração, amor mesmo. Seus defeitos, conhecidos pela massa, é que o fazem mais humano."


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"Começa o show. O conjunto RC-7 já esta no palco. Roberto Carlos comenta:

- Quer apostar como tinha mais gente lá fora do que aqui dentro? Meu público é pobre, não pode pagar ingresso muito caro.

É a vez dele. Roberto está curvado, agradecendo os aplausos. Mas, em verdade, há menos gente aqui do que lá fora. A gritaria impede que se possam ouvir suas interpretações. Sou confundido com seus auxiliares e recebo inúmeros pedidos. No fundo, todos querem a mesma coisa, sejam pessoas humildes ou importantes: usar o ídolo, conhecer o moço, tocá-lo, vê-lo de perto. Agora, concentro-me na reação do público. Se Roberto Carlos vira o rosto para um lado da platéia, todo esse grupo de gente se levanta e grita seu nome, como se só depois disso passassem a existir ali dentro. Jogar flores no palco é algo muito importante e simbólico, uma carícia, uma doação, um diálogo. Entregar de mão a mão um pacote de flores já significa uma comunicação mais íntima e intensa. Uma jovem loira - catorze ou quinze anos - apertava no peito umas rosas embrulhadas em papel celofane, e chorava olhando bem de perto o cantor, na primeira fila. Não fazia como as outras, entregando quase que anônimamente seus presentes simbólicos à pessoa simbólica que ali cantava.Ela ficava à margem, sem ousar aproximar-se do palco. Não sei por que, mas aquelas rosas me lembraram a laranja que vi nas mãos de Roberto Carlos, sozinho, no quarto do hotel."


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"Do ginásio, voltamos para o hotel, sempre protegidos pela polícia. Eu sentia uma frustração nas pessoas, no ar, em mim mesmo, em tudo. Roberto Carlos descansaria uma hora para o próximo show, num clube da cidade, onde se realizaria o baile das debutantes. Já era uma hora da manhã quando entramos no clube. Salão lotado, gente sentada no chão. Mas ali a adesão a Roberto Carlos não era total. A curiosidade e a admiração, sim. As debutantes posavam ao lado do cantor, orientadas pelo cronista social da cidade. Um público completamente diferente do anterior. Gente de classe mais elevada e pessoas adultas, idosas em grande parte. De qualquer maneira, o show foi outro sucesso. Quando ele deixou o palco, estava sério.

De novo, aglomerações, gritos, correrias, proteção policial à saída do clube. Num corredor estreito, repleto de moças, houve certa falha no esquema de segurança e Roberto foi agarrado, tocado, agredido, na confusão. Bem atrás dele, empurrada com violência e até espancada pelos guardas, vi uma moça loira e bonita agarrando os cabelos do cantor e ficando com um chumaço deles na mão. Finalmente conseguimos sair à rua. Agora, a frustração era intensa, e, então, pude descobrir o que havia no ar. Foi a frase de um soldado, no carro:

- Por que, tendo tanto moço na cidade, elas fazem isso com ele? E com a rapaziada daqui ficam se fazendo de difíceis?"


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"No avião, voltando para São Paulo, conversei a viagem toda com Roger Bester sobre isso. Seu problema, com as fotografias, era idêntico. Sim, estávamos tentando retratar e descrever um homem em crise. Crise artística e humana, pois essas duas dimensões são inseparáveis, ou talvez uma só nele. Mas o que significa estar em crise? Considero que crise é um estado natural e necessário em todo processo de evolução, de crescimento do homem diante de si mesmo, diante das coisas em que acredita, na vida e no mundo. Representa o momento de saturação. de esgotamento de coisas que já foram boas, válidas, úteis, mas que não podem servir mais, por inúmeras razões. E, no entanto, é preciso que nos libertemos delas antes mesmo de encontrar outras, que as substituam e que sejam mais de acordo com a experiência atual, as verdades novas que nos esclarecem e exigem resposta também nova, tanto na vida como na criação. E, por superar uma crise, entendo o esforço corajoso de abandonar o passado, tudo o que ele significa, para sondar o futuro à procura de novas significações. Enfim, apenas à custa das crises pessoais e criativas é que evoluímos, sobrevivemos. Mas há estreita relação entre o que vamos viver e fazer e o que vivemos e fizemos. Deve ser assim com todo mundo, mas também são raros os que conseguem suportar a angústia dessas crises e possuem a necessária coragem para superá-las. Daí a curta existência de tantos artistas."

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